Este é um excelente texto que faço questão de compartilhar para que as pessoas possam ler e compreender o momento histórico em que estamos.
Postado por
Saul Leblon às 22:54 em www.cartamaior.com.br
15/08/2012
O economista
Carlos Lessa costuma dizer que o Estado brasileiro inventou o keynesianismo em
1930, antes de Keynes, com Getúlio Vargas. O Brasil é uma criação do Estado,
ironizava Celso Furtado sobre a esquálida capacidade de iniciativa da sempre
festejada 'iniciativa privada'. A verdade é que em praticamente todo os ciclos
de crescimento coube ao Estado brasileiro determinar o nível de investimento,
fixar prioridades, induzir e financiar a participação privada no arranjo
macroeconômico. Por que seria diferente agora? Ou melhor, porque é tão difícil
agora reproduzir a mesma alavanca, quando seu papel contracíclico mais que
nunca é necessário face ao colapso da ordem neoliberal?
A interrogação
perpassa o pacote de concessões de infraestrutura lançado pelo governo Dilma
nesta 4ª feira. Nele alguns enxergaram 'a rendição à lógica das privatizações';
mas há uma novidade importante.
Junto com
investimentos da ordem de US$ 65 bi , a metade a ser ativada nos próximos cinco
anos para deslanchar 7,5 mil kms de rodovias e 10 mil kms de ferrovias, a
Presidenta Dilma anunciou a criação de uma estatal, a EPL , Empresa de
Planejamento e Logística.
Caberá a ela,
a partir de agora, a responsabilidade de: ' realizar estudos da logística
brasileira, articular investimentos, constituir e estruturar projetos'.
Ou seja,
formular um leque estratégico de possibilidades para que o governo possa
atrair, induzir e coordenar a iniciativa privada e/ou estatal na execução de
obras do interesse do país.
Por incrível
que pareça, isso é novidade no Brasil do século XXI.
O que
subsistia até agora eram planos episódicos, encomendas de interesses privados,
visões fracionadas do país desenvolvidas em escritórios de grandes
empreiteiras.Portanto, desprovidas da abrangência do interesse público, à
margem da constituição de um quadro estatal de técnicos de alta qualificação,
capazes de pensar o conjunto e o futuro brasileiro.
Nem sempre
foi assim.
O Brasil já
teve uma empresa de planejamento estratégico, o Grupo Executivo para a
Integração da Política de Transportes.
Criado em
1965, o Geipot foi substituído em 1973 pela Empresa Brasileira de Planejamento
de Transportes, não por acaso extinta em 1990 e liquidada em 2002,
respectivamente, nos governos Collor e FHC .
Antes de
sermos brindados com a revelação da autossuficiência dos mercados, graça
revelada pelos governos tucanos nos anos 90, prescindir do planejamento público
era algo desconhecido entre nós.
A ordenação
estatal foi decisiva na etapa de substituição de importações, incluindo-se os
'50 anos em 5' de JK, com suas 30 diretrizes articuladas em um Plano de Metas.
A 31ª
meta-síntese era a construção de Brasília.Ponto de amarração sistêmico e
logístico da malha de estradas voltadas para a interiorização e o
desenvolvimento regional, cujo marco foi a criação da Sudene, em 1959, dirigida
por Celso Furtado.
Mesmo durante
a ditadura, que tutelou a substituição de importações na indústria de base,
articulada a grandes obras públicas, os PNDs, planos nacionais de
desenvolvimento, tiveram papel importante. O então BNDE e o próprio Ipea --que
paradoxalmente abrigava intelectuais progressistas-- foram núcleos pensantes
desse processo.
Na tradição
brasileira cada ciclo de desenvolvimento sempre teve a sua usina de refexão
estratégica.
O vazio
herdado dos governos tucanos --coerente com a ausência deliberada de projeto
para o país-- não foi superado até hoje de forma orgânica.
O ministério
do Planejamento teve essa dimensão destruída e nunca mais recomposta.
A Casa
Civil,com Dilma Rousseff no governo Lula, acumulou atribuições de planejamento
estratégico e assim permanece até hoje.
É evidente
que faltam braços,cérebros, estruturas e fôlego orçamentário para sair da
improvisação, prever salvaguardas ambientais e até mesmo fiscalizar o que se
licita, a tempo de evitar interrupções e gargalos inesperados.
O atraso
desconcertante numa obra de baixa complexidade como a da integração da bacia do
São Francisco --basicamente cavar canaletas, construir passagens de nível e
concretar-- é sugestivo de uma engrenagem travada.
Nos anos 90,
o esgotamento das bases financeiras e políticas dos ciclos articulados em torno
da coordenação estatal deslocou o pêndulo de forma drástica.
Saturada a
capacidade de endividamento externo, que quebrou o país e resultou em dramático
desequilíbrio fiscal, procedeu-se ao desmonte do Estado brasileiro. O
'pensamento estratégico' passou a ser função das 'cartas de intenção' impostas
pelo FMI, com metas de arrocho para pagar os credores.
Ao ciclo de
privatizações e liquidações de estatais --para honrar acordos e atrofiar o
'gasto público'-- correspondeu um desmembramento de estruturas e quadros que
subtraiu ao aparelho público, deliberadamente,repita-se, a capacidade de
pensar, coordenar, propor e debater com a sociedade os rumos do seu
desenvolvimento.
Não é pouco o
que se perdeu.
Tome-se o
impulso industrializante representado hoje pelo investimento da Petrobrás no
pré-sal. São US$ 236 bilhões até 2016. A exigência de conteúdo nacional saltou
de 45% há 10 anos para 65% hoje. E vai aumentar.
Esta semana a
Petrobrás e o BNDES lançaram um novo programa de financiamento de R$ 3 bi.O
objetivo é rastrear e viabilizar novas oportunidades de produção nacional, que
atendam a demandas ainda importadas.
Isso seria
impossível se a Petrobrás não tivesse escapado de se tornar a Petrobrax tucana;
assim como ficou inviável na área mineral com a privatização da Vale, por
exemplo.
Quem não se
lembra dos sucessivos e infrutíferos apelos de Lula ao então big boss tucano da
Vale, Roger Agnelli, 'o herói dos acionistas', para investir numa fábrica de
trilhos no Brasil --cuja demanda era e é atendida pela produção chinesa feita
com minério de ferro brasileiro?
Mais
importante que arguir a distinção entre concessão e privatização, como se
empenham colunistas tucanos, seria refletir se a criação da EPL é suficiente
para dar ao governo na área da infraestrutura, o mesmo torque indutor que a
Petrobras lhe proporciona na esfera da energia.
Tudo indica
que não.
Mas o passo
dado não será irrelevante se corresponder a um salto efetivo de desassombro
diante de um mundo que mudou.
O colapso da
ordem neoliberal impõe uma profunda transformação na agenda do desenvolvimento.
O Estado e o planejamento democrático --não aquele do autoritarismo-- devem
substituir a prerrogativa dos mercados desregulados na condução da economia e
dos destinos da sociedade.
Não se trata
de um cacoete exclamativo. Trata-se de substituir um tempo histórico por outro.
Requer, entre outras coisas, repactuação de forças, novas ferramentas e
reordenação de prioridades orçamentárias. Causa espécie que na agenda de
negociações entre o governo e o funcionalismo público em greve, nenhuma palavra
nesse sentido tenha sido pronunciada dos dois lados.
Sobretudo,
porém, é inútil desperdiçar energia política com medidas protelatórias,
aguardando o retono a uma 'normalidade' que não existe mais.
Os livres
mercados levaram o mundo ao desastre atual. Não porque os banqueiros sejam
demônios adornados de gravatas italianas. Mas porque a lógica segundo a qual a
exacerbação dos interesses unilaterais leva à ' harmonia eficiente' é
esfericamente falsa. As perdas e danos da crise não nos deixam mentir.
'Vamos
reforçar a capacidade do Estado de planejar, organizar a logística, e
compartilharemos com o setor privado a execução dos investimentos e a prestação
dos serviços", disse a presidente, após o anúncio desta quarta-feira.
Oxalá isso não signifique apenas a criação simbólica de uma bem-vinda empresa estatal
de planejamento.
Um bom
dissipador de dúvidas seria divulgar um orçamento à altura do desafio histórico
e nomear um grupo de intelectuais e lideranças sociais de peso para formar o
conselho dessa usina de desenvolvimento. A ver.